Queer at The Movies: Um Panorama da Trajetória Queer no Cinema

Parte VI: Lixo e Purpurina: O Cinema nos Decadentes Anos 80

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A menos de duas décadas dos importantes acontecimentos políticos, sociais e artísticos que imbuíram os anos 60 de um espírito libertário e transgressor, o mundo virava as costas para os ideais da contracultura com um desencantamento que marcaria o pensamento coletivo e estaria arraigado na construção da identidade cultural de toda uma década.

Se, para o contexto histórico dos anos 80 a experiência do flower power fora um episódio falido, fruto de posturas equivocadas e uma visão utópica de mundo, uma nova ordem em termos de esvaziamento das ideologias sociais e em prol dos avanços econômicos eclodia no cenário global; o neoliberalismo, em plena ascensão desde os anos 70, consolidou-se a partir de 1980 como o sistema que se ocuparia em fomentar a expansão tecnológica e econômica nos países de primeiro mundo, conferindo uma maior liberdade ao mercado. A ação monopolizadora das grandes empresas no setor econômico levou a uma má distribuição de renda para a população e elevou os índices de desigualdade social; a hegemonia do consumo estava instaurada e com o crescente número de países aderindo ao sistema neoliberal, a questão da globalização estava colocada como grande problemática no que concerne à identidade cultural de populações inteiras ao redor do mundo.

O individualismo exacerbado soterrava os discursos ideológicos e a subjetividade perdia espaço para a massificação. Tal processo de padronização da cultura, intensificado pelos avanços tecnológicos, empurrava cada vez mais o homem para um lugar de alienação generalizada e comodismo, onde o cidadão se tornou vampirizado pelo Estado, deslumbrado pelas possibilidades de consumo e inerte em relação à mercantilização de uma cultura dependente da estrutura capitalista.

É claro que essas transformações, que se refletiram nas artes de forma maciça, também se imprimiram na indústria cinematográfica. O cinema político dos anos 70 tivera uma vida curta e, em vez de proclamar uma identidade artística que se comprometesse a dar conta das questões que marcavam um momento histórico, o cinema dos anos 80 abandonou-se a uma sombria, ainda que ostentosa visão de mundo. As ideologias do homem haviam-se escoado para algum lugar desconhecido, e a massificação de todas as coisas consideradas passíveis de valor mercadológico protagonizava nas telas um retrato de decadência moral, hedonismo e culto ao poder econômico. Nos Estados Unidos, a supremacia yuppie se encarregava de conferir um conservadorismo ao pensamento da juventude de classe média, criando um estilo de vida baseado no consumismo e marcando esta geração como o produto humano de uma era de ascensão econômica e inversão de valores.

O grupo Village People no filme Can't Stop The Music.

Os excessos dos anos 80 foram de longe o substrato de sua identidade. Imageticamente, a epidemia da despolitização se instaura na tela e nascem filmes como Can’t Stop The Music, de Nancy Walker, um musical que retratava a era disco, focando na história do grupo Village People. O filme, que hoje recebeu o status de camp, foi considerado o pior filme do ano, à época de seu lançamento, e teve sua exibição restrita a salas para maiores de 17 anos, devido a cenas de nudez masculina e ao homoerotismo presente em algumas sequências.

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Foi também no primeiro ano da década que o cineasta americano William Friedkin, o diretor de O Exorcista (The Exorcist), lançou Parceiros da Noite (Cruising), uma trama policial baseada em novela de Gerald Walker, com Al Pacino à frente do elenco, interpretando um policial que investiga uma série de assassinatos de homossexuais frequentadores dos bares gays de Nova York. Durante a conturbada produção do filme, mais de mil pessoas representando a comunidade gay da cidade realizaram protestos exigindo a suspensão das filmagens, clamando que, ao retratar de forma generalizada o comportamento dos gays como promíscuo e decadente, o filme mostrava uma postura anti-gay que poderia incentivar a crescente onda de crimes de ódio contra os homossexuais nos Estados Unidos. A despeito de toda a controvérsia gerada em sua produção, o filme foi um fracasso de bilheteria, mas marcou a história do personagem queer nas telas por trazer a público discussões políticas em torno da imagem do homossexual alimentada pela mídia. Nesse sentido, é interessante observar como, imerso numa época de pobreza crítica, o cinema suscitava uma contestação por parte de um grupo minoritário que começava a perceber a urgência de uma organização política para a reivindicação de seus direitos.

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Al Pacino em cena de Parceiros da Noite.

Realizado a apenas dois anos do assassinato de Harvey Milk, ativista símbolo da causa gay nos Estados Unidos, o filme, ainda que se reconheça aspectos positivos em termos cinematográficos, representou uma enorme pedra no caminho da comunidade gay rumo ao asseguramento de seus direitos. O conteúdo de Parceiros da Noite é cruel em relação ao próprio contexto: se o cinema é formador de opinião e suposto retrato de seu tempo, Friedkin acabara de filmar uma obra conivente com a discriminação e a estereotipação.

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Mas a representação negativa de indivíduos hostilizados pela normatividade estava longe de ser analisada como fator contribuinte para o preconceito, e assim, filmes como Vestida Para Matar (Dressed to Kill) se utilizavam de personagens transviados e premissas obscuras para alimentar um público ávido por violência e sexo. No filme de Brian De Palma, uma apaixonada homenagem à Hitchcock, o personagem transgênero interpretado por Michael Caine situa-se na trama como o elemento psicologicamente instável a ser interditado pela sociedade. Tal representação dos corpos não normativos -sendo a obra de De Palma um claro resgate da estética noir dos anos 40 e, consequentemente, de algumas de suas temáticas recorrentes, como a escolha de personagens marginalizados para protagonizar crimes e associação às patologias psiquiátricas- parecia ser perdoada diante das qualidades estéticas do filme e do brilhantismo do diretor dentro da linguagem cinematográfica.

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A violenta cena de estupro em Sem Controle.

Notadamente reflexo de sua época, o filme Sem Controle (Spetters), produção holandesa de Paul Verhoeven, também marcou o ano de 1980 com controvérsias. O retrato à la Easy Rider de uma juventude perdida que busca incessantemente o prazer trazia protagonistas inconsequentes que viam em suas motocicletas a extensão de sua masculinidade. De cenas com sexo oral explícito e mulheres apresentadas como mero produto de consumo a garotos comparando os tamanhos de seus órgãos sexuais, uma sequência em particular foi massivamente criticada: um jovem é estuprado por uma gangue de homossexuais em trajes sadomasoquistas. O séquito de cenas de violência gráfica, excessos com drogas e personagens desprezíveis e amargurados fazia de Spetters um material nocivo à comunidade gay, que, desta vez na Holanda, foi a público na imprensa para protestar contra a visão caricatural apresentada pelo diretor. Verhoeven, rechaçado em seu país pela crítica especializada, não tardou a migrar para os Estados Unidos, onde dirigiu alguns sucessos de bilheteria como Robocop (Robocop) e Instinto Selvagem (Basic Instinct), e fracassos como Showgirls (Showgirls), sempre repetindo, agora amparado pelo olhar mais conivente de Hollywood, suas representações estereotipadas de sexualidade. Por mais que o diretor tenha buscado um retrato decadentista de uma juventude egocêntrica e sem esperanças, seu Spetters resulta em uma visão que não apenas corrobora com os preconceitos da normatividade, mas também os eleva a dimensões consideráveis.

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Cena de Pepi, Luci, Bom y Otras Chicas Del Montón, com Olvido Gara.

O mesmo decadentismo moral proeminente na rotina dos jovens das grandes cidades começava a ser abordado de forma inventiva e corajosa por um diretor espanhol. Em 1980, Pedro Almodóvar lançava o seu primeiro longa-metragem comercialmente distribuído, Pepi, Luci, Bom y Otras Chicas Del Montón, obra seminal de uma filmografia reconhecida por seu estilo único e por seu discurso mordaz acerca dos tabus da sociedade. Realizado numa Espanha recém-saída do franquismo, e, por isso mesmo, em pleno exercício de uma liberdade de expressão por décadas reprimida, Pepi… trazia personagens predominantemente femininas protagonizando os mais variados episódios de rebeldia em relação às normas hegemônicas. A subversão de Almodóvar não faz concessões a nenhum dos tipos sociais ali retratados: toda a performatividade social é passível de ridicularização. Envolvidas por uma atmosfera ambígua entre o absurdo e a comicidade, as personagens almodovarianas trazem uma postura desafiadora e desestabilizadora: um incômodo para a comunidade heteronormativa e o conservadorismo cristão. Com Pepi…, Almodóvar conquistava um lugar de reconhecimento artístico, flertando sempre com uma estética kitsch e inovando em termos de representação de indivíduos transviados, filmados aqui com um olhar que está inserido no próprio meio que retrata.

O teor cômico e subversivo de Almodóvar voltaria dois anos depois com Labirinto de Paixões (Laberinto de Pasiones), mais amarrado em termos de narrativa, mas mantendo a estética kitsch e uma gama de personagens amorais, marginalizados e sexualmente não-normativos.

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Julie Andrews em Victor ou Victoria.

No mesmo ano, o ator Dustin Hoffman fora indicado ao prêmio da Academia de Artes e Ciências Cinematográficas como melhor ator pelo filme Tootsie (Tootsie), de Sydney Pollack, uma comédia sobre um homem que se passa por mulher para conseguir emprego em uma novela. A temática crossdresser, ainda apresentada de forma ingênua pelos padrões hollywoodianos vinte e três anos depois de Quanto Mais Quente Melhor, não era trabalhada em Tootsie de forma profunda no que concerne às questões de gênero, mas representava uma possibilidade de se abordar o tema dentro de uma indústria comercial, fato comprovado naquele mesmo ano com o musical Victor ou Victoria (Victor/Victoria), de Blake Edwards, onde a temática da identidade de gênero se inseria no próprio discurso do filme, através dos personagens interpretados por Julie Andrews, uma artista de cabaré que se passava por um homem gay, e Robert Preston, seu antecessor nos palcos, um veterano homossexual que a ajuda em seu plano. Aclamado pela crítica, o filme introduz com maestria as questões de performatividade de gênero, mostrando uma construção respeitosa de indivíduos transviados. Era uma das raras vezes que o cinema hollywoodiano abria brechas em seu universo heteronormativo para dar espaço a retratos bem trabalhados de personagens queer. Tanto Tootsie quanto Victor ou Victoria renderam aos seus atores indicações ao prêmio da Academia no mesmo ano, assim como o ator John Lithgow, pelo papel do transgênero Roberta no filme O Mundo Segundo Garp (The World According to Garp), adaptação do romance de John Irving de mesmo nome. O filme trata de forma delicada temas como a homossexualidade, o papel da mulher na sociedade, o feminismo e a intolerância.

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John Lithgow como o transgênero de O Mundo Segundo Garp.

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Christopher Reeve e Michael Caine em Armadilha Mortal.

Mas enquanto a crítica finalmente voltava seus olhos para filmes como Victor ou Victoria e Garp, a atenção do público em 1982 fora amplamente focada em uma cena do filme Armadilha Mortal (Deathtrap), de Sidney Lumet, que trazia um beijo gay entre os atores Michael Caine e Christopher Reeve. Os rumores da cena, divulgados na imprensa antes do lançamento do filme, a despeito da enorme controvérsia, foram decisivos para o seu destino nos cinemas: um fracasso de bilheteria.

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O elenco de Sem Regras Para Amar.

Curiosamente, outros filmes de 1982 a trazer cenas de homoafetividade foram bem recebidos pelo público: o drama de relacionamentos Sem Regras Para Amar (Making Love), de Arthur Hiller, abordava em tons realistas a crise de um homem casado que aos poucos se libertava de uma auto repressão para assumir sua homossexualidade, e Personal Best, de Robert Towne, que falava sobre a relação amorosa entre duas atletas nas Olimpíadas de 1980.

Sem Regras Para Amar, apesar da presença de um personagem relacionado à rotina de promiscuidade dos bares gays nova-iorquinos tão exaustivamente exposta na mídia, recebeu grande simpatia da comunidade gay norte-americana; o trabalho de Hiller exibia a rotina noturna de homossexuais em busca de sexo sem compromisso, mas por outro lado refletia sobre o desejo e a solidão e se preocupava mais em acercar-se das problemáticas dos relacionamentos humanos e do espaço do homossexual na sociedade.

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O ator Brad Davis como o Querelle de Jean Genet.

1982 também foi ano de Querelle (Querelle), último expoente da obra monumental do alemão Rainer Werner Fassbinder, lançado postumamente e aclamado pela crítica por sua estética e conteúdo corajosos. Adaptação de romance de Jean Genet, o filme de Fassbinder trazia um paralelo entre as figuras dos dois autores, ambos homossexuais assumidos e artistas engajados num embate com as normas pré-estabelecidas. Genet fora o grande marginal de sua época, em eterno conflito com o pensamento burguês conservador, trespassando a linha do moralmente permitido sempre com uma postura desafiadora, transitando entre o submundo parisiense e rodas intelectuais de artistas e escritores. Fassbinder, por sua vez, desde muito jovem –realizou seu primeiro filme aos 21 anos- interessava-se em retratar os deslocados na sociedade alemã do pós-guerra, sendo ele mesmo um rebelde em seu próprio meio, escolhendo uma via de marginalização em suas narrativas repletas de personagens subterrâneos: lésbicas, mulheres oprimidas, gays relegados a bares, portos, becos e outros recantos sujos da cidade, sempre um cenário de decadência. Em Querelle, a mise-en-scène idealizada por Fassbinder contém um imaginário da sexualidade, sobretudo uma sexualidade transviada, que nos é apresentada sem sutilezas –ou concessões- através de construções arquetípicas que buscam revelar uma certa iconografia gay marginalizada. Assim, por uma ambientação onde a cenografia e a fotografia estão impregnadas de plasticidade kitsch, vemos desfilar clichês de sexualidade transviada em uniformes de marinheiro ou policial.

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Tanto em Genet quando em Fassbinder, essa sexualidade banida da ordem moral se constitui em violência e tragédia. Desarraigados da normatividade, seus personagens perambulam tal qual seus criadores: incertos por uma geografia de decadência e perplexidade, um passo sobre o pavimento da calçada e o outro à margem, nas sarjetas onde as instituições escoam seus dejetos. O homem marginalizado, que aceita a selvageria do desejo, enfrenta agressivamente os valores impregnados de hipocrisia de uma sociedade trôpega e ainda entorpecida pelo legado vergonhoso de sua geração passada.

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Em 1983, o diretor inglês Tony Scott fazia sua estreia no cinema com o filme Fome de Viver (The Hunger), um conto sombrio que utilizava uma história de vampiros como metáfora para a inevitabilidade da degradação física. Longe de ser um filme de terror convencional, a obra de Scott revelava uma melancólica poesia de decadência impregnada de ambiguidade para tratar de desejo e beleza. A sequência de sexo entre Susan Sarandon e Catherine Deneuve marcou o longa, escandalizando a plateia e desagradando parte da crítica. Hoje este primeiro trabalho do irmão de Ridley Scott se tornou um clássico cult e merece atenção pela diversidade de questões que deixa vislumbrar. Uma delas é trazida de forma especialmente sutil, mas engendra em si toda a essência da obra: o corpo no mundo, normativo ou marginalizado, está fadado à degeneração.

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Videodrome, de David Cronemberg: controle da mídia e mutações genéticas.

Tal constatação, porém, tem inter-relação intrínseca com um discurso mais grandiloquente e repleto de possibilidades de interpretação suscitado por outro filme de 1983: Videodrome (Videodrome), do canadense David Cronenberg. O diretor, considerado o principal cineasta do gênero conhecido como body horror –ou biological horror-, explora em seus primeiros trabalhos a relação do homem com o corpo, e, principalmente, seus medos e anseios quanto a ele, cabendo aqui a abordagem das mais diversas anomalias e mutações. Em Videodrome, Cronenberg dá um passo além da genética e da realidade tecnológica da época, apresentando uma obra questionadora sobre as consequências da alienação midiática nos seres humanos, e, mais especificamente, em seus corpos. Aqui, os corpos normativos sofrem um processo de mutação, provocado pela exposição exacerbada à televisão: é o caso de Max, protagonista vivido por James Woods, que vê nascer em seu braço uma arma de fogo, enquanto em seu estômago se abre um orifício; esse processo de alteração física envolve, em uma simbólica –mas clara- representação dos órgãos sexuais masculino e feminino, um desejo irrefreável que impele Max a penetrar o braço-arma na cavidade em seu abdômen.

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"Vida longa à nova carne!"

Esta abordagem do corpo estranho, em Cronenberg, se faz de forma incisiva e eloquente, e, embora amparada pelo gênero de filmes em que se realiza -terreno que permite maior liberdade criativa no que concerne à concepção de discursos sobre ciência e tecnologia- transcende a ficção científica ao dar espaço a uma crítica mordaz à massificação das mídias e a tocar na questão do psicológico em relação ao corpo. A imagem amplamente difundida, banalizada ao extremo, porque esvaziada de valor, apodera-se do controle da sociedade e logo o homem é dependente dela, ávido por violência e pornografia. Em dado momento, Max proclama: “Vida longa à nova carne!” e ao encerrar seu filme Cronenberg lança ao espectador os desdobramentos reflexivos desta fala.

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Rupert Everett e Cary Elwes: descoberta do amor em Memórias de um Espião.

1984 foi o ano de Memórias de Um Espião (Another Country), adaptação de peça de Julian Mitchell baseada na vida do espião inglês Guy Burgess, que trabalhou para a União Soviética durante a Guerra Fria. O filme, dirigido por Marek Kanievska, relata a juventude de Guy numa rígida faculdade, onde descobre a sexualidade com um colega e se depara com os códigos morais de uma instituição que mimetiza em sua estrutura a hipocrisia do mundo exterior. Kanievska contrasta o enfoque de temas fortes, como o suicídio de jovens que sofrem bullying em razão da manifestação de uma sexualidade socialmente reprimida, com a delicadeza da descoberta do amor e do sexo, compondo uma visão singela sobre exclusão e tecendo uma crítica sobre um mundo de aparências.

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Corações do Deserto.

Considerado um dos melhores filmes sobre lésbicas, Corações do Deserto (Desert Hearts), de 1985 era, à época de seu lançamento, uma das poucas produções mainstream a retratar abertamente o relacionamento amoroso entre duas mulheres. O filme, adaptado do romance da escritora canadense Jane Rule, lésbica assumida e ativista pelos direitos dos homossexuais e das mulheres, foi dirigido por Donna Deitch, uma cineasta feminista que ganhou notoriedade por filmar uma história de amor entre mulheres evitando os clichês que o cinema relegara às lésbicas –talvez ainda mais repudiadas do que os gays nas representações cinematográficas. As protagonistas de Corações do Deserto, ao contrário da larga escala de filmes com a mesma temática que culminavam em finais trágicos, contendo suicídios ou o retorno à heteronormatividade, receberam o final positivo na tela, tão aguardado pela comunidade lésbica. A sincera história filmada por Deitch ainda não representava uma força expressiva enquanto obra que se levanta contra a hegemonia castradora de Hollywood, mas abria caminho para que o cinema comportasse olhares livres de estereótipos e preconceitos em relação às lésbicas.

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William Hurt em O Beijo da Mulher Aranha: reconhecimento da Academia.

Neste mesmo ano, o ator William Hurt recebia o prêmio da Academia por interpretar um homossexual no filme O Beijo da Mulher Aranha (Kiss of The Spider Woman), de Hector Babenco. Era a primeira vez na história que um ator ganhava um Oscar pelo papel de um homossexual, e, a despeito de fatores negativos, como a prisão do personagem por “corrupção de menores”, o filme de Babenco tocava em questionamentos pertinentes como a sensibilidade dita feminina e o abismo que se cria na comunicação entre a sexualidade marginalizada e a heteronormativa.

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Questões de sexualidade e raça: Gordon Warnecke e Daniel Day Lewis em Minha Adorável Lavanderia.

Questões igualmente urgentes foram enfocadas na comédia dramática Minha Adorável Lavanderia (My Beautiful Laundrette), de Stephen Frears. O filme, de 1985, não tocava apenas na temática da sexualidade, como também trazia à luz questões de raça. O personagem Omar, um paquistanês vivendo em Londres, em aceitação com a própria sexualidade, mas em conflito com as rígidas normas de suas relações familiares, convida o amigo Johnny, um inglês punk, para trabalhar com ele na lavanderia de seu tio. Aos poucos a amizade entre os dois se intensifica e eles acabam se apaixonando. Frears nos mostra o desenvolvimento deste relacionamento de forma delicada; ao passo que torcemos por um amor que se revela sincero, sabemos que o casal de protagonistas só pode vivenciar sua história no ambiente seguro de sua lavanderia. Omar, que desde sempre tivera de conviver com o fato de ser um imigrante num país onde os imigrantes têm funções muito bem definidas, é agora alvo de dupla intolerância. A lavanderia, terceiro protagonista da trama, é ao mesmo tempo o espaço emblemático de realização do amor proibido e denúncia de uma hipocrisia engendrada na lógica social: aqueles considerados a sujeira da sociedade estão a lavar a roupa suja dela.

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Buddies

Mas foram os filmes Aconteceu Comigo (An Early Frost), de John Erman, e Buddies (Buddies), de Arthur J. Bressan Jr., as primeiras obras cinematográficas a tocarem numa recente e ainda inexplorada ferida do mundo contemporâneo: a AIDS. Feito para a televisão, Aconteceu Comigo mostrava a história de um advogado homossexual que retornava à casa dos pais para contar que descobrira ser portador do vírus HIV. Em Buddies, o foco dramático é direcionado para um caso terminal. O diretor Arthur J. Bressan Jr., ele mesmo portador do HIV, viria a morrer de complicações da AIDS dois anos depois do lançamento de seu filme. O assunto começava a ser investigado pelo cinema, infelizmente de forma tímida ainda, em vista dos preconceitos da maior parte da população, que pouco sabia sobre o vírus, até então. Em 1985, diante dos inúmeros casos que vinham a público desde o começo da década, a AIDS, considerada uma doença dos homossexuais, colocara toda a comunidade gay numa atmosfera de medos e incertezas, selando uma aura de pessimismo a envolver as perspectivas dos homossexuais em relação à conquista dos seus direitos.

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Caravaggio, de Derek Jarman

No ano seguinte, Derek Jarman realizava seu Caravaggio, uma livre cinebiografia que relata os pormenores da vida sexual do artista italiano, sua obsessão por um modelo e o triângulo amoroso que se criou entre eles e uma mulher. Os temas da beleza e da criatividade estão intrinsecamente relacionados com a sexualidade e o desejo.

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Em 1987 Pedro Almodóvar lançava A Lei do Desejo (La Ley Del Deseo), onde mais uma vez trabalhava de forma peculiar uma série de tabus, dentre eles, assuntos como abuso sexual na infância, incesto, troca de sexo, relações homossexuais e, como manifesta o título, as normas que regem o desejo e a sexualidade. Almodóvar destaca-se não apenas pela abordagem de tais questões, como pela forma com que se acerca delas: tudo o que é desvio e desajuste pelos olhos da sociedade é visto por Almodóvar com uma naturalidade própria de um pensamento que compreende mais nuances nas combinações de gênero, sexo e sexualidade do que pressupõe a lei heteronormativa.

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Carmen Maura como Tina, em A Lei do Desejo: trânsgenero e incestuosa.

Nesse sentido, ao apresentar personagens como a transgênero Tina, interpretada por Carmen Maura, que se submete a uma cirurgia de mudança de sexo a fim de viver um romance incestuoso com o próprio pai, Almodóvar problematiza a discussão em torno do desejo sexual, da performatividade de gênero e seus enquadramentos permitidos pela moral hegemônica.

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A questão ainda ganha mais um ponto de complexidade pelo fato desta personagem, depois de ser abandonada pelo pai/amante, passar a repudiar o sexo masculino. Assim, após ter sido um homem apaixonado pelo próprio pai, Tina se transforma em uma mulher vivendo um relacionamento heterossexual, ainda que incestuoso, e, finalmente, adquire uma postura misândrica em relação ao sexo masculino, sua configuração de origem. Tal construção de personagem, vista por uma percepção heteronormativa, calcada em valores cristãos há muito instituídos e enraizados no pensamento coletivo, pressupõe uma compreensão convencional de corrupção moral e desajuste psicológico. Mas Almodóvar em nenhum momento desvia Tina para a margem da normalidade; se isto ocorre no filme, é resultado de uma lei social que inevitavelmente deixa suas marcas nas vidas destes personagens. Com Tina, Almodóvar parece mostrar uma conformação considerada absurda pelo mundo heteronormativo – como ser homem, mulher e misândrica, tudo ao mesmo tempo?- se perguntariam aqueles que aceitam apenas combinações diretas e minimizadas de sexo e gênero. Mas o olhar do diretor para seus personagens, ao passo que suscita perplexidade, é um olhar que nada contém de absurdo. Por que o cinema negaria –e até então negava- a inclusão de personagens que, a despeito de um processo de invisibilização social, são notadamente seres vivendo no mundo?, indaga implicitamente Almodóvar, cujos filmes, nas palavras do teórico Belidson Dias, em seu artigo intitulado Fronteiras em Fluxo: As Malas de Almodóvar,

(…) funcionam como estratégias criativas para acessar a profundidade de práticas culturais, e para diretamente interferir, revelar, e desvelar convenções sociais ao reivindicar a existência, permanência e a continuação de corpos transgressivos e o “estranho” na vida diária. (DIAS, 2010, p. 01)

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Maurice, de James Ivory. Intolerância que perdurou seis décadas.

Maurice (Maurice), de James Ivory, lançado em 1987, é uma adaptação do polêmico e contundente romance escrito por E. M. Forster em 1913. O escritor inglês, antevendo a reação de um público que não estava preparado para uma história de amor entre dois homens, decidira engavetar o livro, que só deveria ser publicado após sua morte. Forster morreu em 1970, aos noventa e um anos. Em 1971 Maurice foi publicado, segundo o desejo de seu autor. Quase seis décadas depois de ter sido escrito, e em plena era da revolução sexual, a obra foi vista com maus olhos por parte da crítica, que considerara fantasioso o desfecho não trágico de um romance homoafetivo retratado numa época em que a homossexualidade era considerada crime na Inglaterra.

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A Pequena Sereia: metáfora dos corpos abjetos?

Um discurso bem menos direto, porém rico em profundidade reflexiva, instaura-se na adaptação realizada pela Disney em 1989 para o conto A Pequena Sereia (The Little Mermaid), de Hans Christian Andersen, escrito originalmente em 1836. A ambiguidade presente na história de Andersen é vislumbrada no próprio cerne de sua narrativa: há uma protagonista cujo corpo é metade peixe, metade mulher; ela vive no mar e, encantada pelas coisas do mundo dos homens, apaixona-se por um príncipe humano; a pequena sereia, então, estará disposta a tudo para transformar sua condição, convertendo-se de criatura antropomórfica para mulher. A partir desta premissa, inicia-se uma série de implicações dentro desse processo metamórfico: para se transformar em humana, ela precisa abdicar de algo; esse algo é a preciosa voz, descrita como capaz de um canto belíssimo, que a pequena sereia dá para a feiticeira do mar em troca de um par de pernas. Através de sua transformação, a sereia deixa de ser criatura abjeta aos olhos do príncipe; essa conversão pode ser associada a rumores sobre a homossexualidade de Andersen, aspecto jamais comprovado em sua biografia, mas suscitado por seu comportamento dito afeminado. Se verdadeira, tal perspectiva poderia ser vista na construção da pequena sereia como o indício emblemático de um mal estar em relação ao próprio corpo. Se, para transitar na sociedade humana o indivíduo circunscrito às margens desta sociedade –e aqui ele está literalmente às margens, pois o oceano representa o espaço inóspito de profundezas onde pairam os corpos abjetos, incomunicáveis com a terra dos homens e desconhecidos por ela- necessita sofrer um processo de transformação física, podemos compreender um paralelo entre o feitiço conjurado pela bruxa com uma operação cirúrgica.

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Sendo mítica ou não a relação entre a construção da personagem da sereia que quer se tornar mulher com a sexualidade de Andersen, uma leitura no sentido de discorrer sobre aceitação social, transposição de regras instauradas e incômodo existencial provocado por uma condição física, se faz pertinente na obra de Andersen.

Essas implicações moralistas trazidas pelo conto original através de procedimentos cruéis – a abdicação de dons intrínsecos à própria identidade em prol da aceitação de outros, e um desfecho trágico, com a pequena sereia falhando em conquistar o príncipe e sendo metamorfoseada em espuma do mar, decorrem do pensamento cristão que imbuía as crenças do autor. Se, de fato Andersen fosse um homossexual em sua época, é provável que tivesse sufocado suas inclinações, motivado por uma ideologia religiosa conservadora, o que se tornaria implícito no castigo e nas duras penas que ele confere à sua protagonista.

Quanto ao filme da Disney, dirigido por Ron Clements e John Musker, assim como na obra original, tais questões jamais são declaradas na narrativa, surgindo apenas num espaço de análise crítica. Ainda assim é importante que se questione ideias levantadas pelas imagens, incisivas enquanto representações de comportamentos atribuídos aos gêneros e graves no que concerne ao papel dos corpos abjetos na sociedade.

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Meu Querido Companheiro: retrato realista e sensível sobre a pandemia da AIDS.

Essa concepção de abjeção relacionada aos corpos e aos comportamentos dos indivíduos hegemonicamente considerados não naturais foi ampla e persistentemente disseminada nos anos 80 pelas instituições conservadoras, que enxergavam na pandemia da AIDS a confirmação de um caráter de degeneração na homossexualidade, ainda listada como doença psicopatológica pela Organização Mundial de Saúde – noção que seria alterada em maio de 1990.  Meu Querido Companheiro (Longtime Companion), de Norman René, relata a história da proliferação do vírus HIV na década de 80, através de um grupo de homossexuais que vê, aos poucos, seus amigos, amantes e familiares morrerem de complicações da AIDS, desde que o jornal New York Times publicara, em 1981, um artigo que descrevia a epidemia como um “câncer gay”, até meados de 1989, quando os personagens remanescentes conversam sobre protestos realizados pela Aids Coalition to Unleash Power, ou Act Up, uma organização criada para defender os direitos dos soropositivos.

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Coming Out, de Hainer Carow: lançado num dos maiores episódios do século XX.

Ao final do ano de 1989, sob a luz de um episódio que marcou o século XX, um filme realizado na Alemanha Oriental contava a história de um professor universitário casado que acaba se envolvendo com um rapaz de 19 anos. Coming Out (Coming Out), de Hainer Carow, recebera a atenção do público quando seus produtores alegaram que seu filme era a primeira e única produção de temática gay a ser realizada na Alemanha comunista. Curiosamente, o filme foi exibido pela primeira vez no teatro Kino International, na noite de 9 de novembro de 1989, no exato momento em que o Muro de Berlim começava a ser derrubado, após 28 anos simbolizando a divisão do mundo em dois blocos divergentes econômica, política e ideologicamente. Conta-se que a plateia do Kino International, ao tomar ciência dos fatos que ocorriam do lado de fora, esperou o desfecho do filme para unir-se à multidão que lançava por terra um símbolo universal de segregação.

Autor: Léo Tavares

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2 respostas para Queer at The Movies: Um Panorama da Trajetória Queer no Cinema

  1. Uauuu … post inspirador e completo. Parabéns!!!

  2. Léo Tavares disse:

    Obrigado, Carla! Em breve postarei a parte final desta pesquisa. Abs.

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