Queer at The Movies: Um Panorama da Trajetória Queer no Cinema

Parte V: Representações Não-Normativas: do Freak ao Cinema Político dos Anos 70

 

Um grande marco para a história queer no cinema abre a década de 70 com uma mudança de paradigmas. Se até então as produções norte-americanas tratavam a temática queer sob uma ótica ainda normativa, mesmo quando sensíveis às suas questões, foi com Os Rapazes da Banda (The Boys in The Band), de William Friedkin, que os Estados Unidos tiveram a sua primeira produção mainstream assumidamente gay. Os Rapazes da Banda, adaptação de um espetáculo off-Broadway de mesmo título, se sobressai com êxito exatamente onde poderia escorregar: ao contar a história de um grupo de homossexuais vivendo em Nova York, Friedkin escolhe uma ótica realista onde a rotina de um gueto é exposta sem recorrer a artíficos retóricos em prol de uma defesa dos gays. Esse universo é dissecado pela câmera com o uso de close-ups constantes e diálogos por vezes corrosivos, que aos poucos vão revelando a essência de seus personagens como seres humanos reais, suas relações entre si, sua exposição (ou não-exposição) social da sexualidade e suas perspectivas de vida no meio em que vivem.

O elenco de The Boys in The Band

À época de seu lançamento, apesar de ter sido recebido com críticas positivas pela imprensa especializada, o filme foi visto por parte da comunidade gay como uma obra que possuía uma certa conotação pejorativa na forma de retratar posturas, hábitos, gestos e expressões de linguagem que estereotipavam e classificavam os gays em alguns padrões específicos. Por outro lado, o crítico Edward Guthmann observou, em artigo publicado em 1999 no San Francisco Chronicle, que o filme envelheceu muito pouco desde o seu lançamento; no tocante à representação de um comportamento homossexual que, ainda que tenha provocado indisposições dentro da comunidade gay americana em 1970, Os Rapazes da Banda se mantém fiel a uma realidade de manifestações gestuais, comportamentais e ideológicas que, se não existissem, não seria mimetizadas. Compreensível que no começo da década de 70, quando os homossexuais iniciavam toda uma luta por seus direitos, temessem que tais representações influenciassem o pensamento popular de forma negativa. Segundo Guthmann, o que mudou em relação ao personagem homossexual no cinema não foram suas características relacionadas às formas de expressão física, mas sim sua postura ideológica, proveniente de um momento político onde o homossexual se afastou de um “uncle-tomismo” gay para uma postura consciente, atuante e transformadora.

cartaz do filme The Christine Jorgensen Story

Também de 1970, The Christine Jorgensen Story, dirigido por Irving Rapper, figura como outro marco queer no cinema -mas sem possuir a qualidade expressiva de The Boys in The Band- por ser o primeiro filme hollywoodiano com um protagonista transgênero e um roteiro biográfico totalmente focado numa operação de mudança de sexo e empenhado em revelar suas implicações psicológicas e sociais. O caso de George William Jorgensen Jr., um ex-militar americano que passara por uma cirurgia de mudança de sexo na Suécia e retornara aos Estados Unidos como Christine Jorgensen foi amplamente divulgado por tablóides de todo o país em 1952. Apesar de buscar uma abordagem séria e simpática à biografia de Jorgensen, o filme de Rapper não conseguiu se distanciar da aura da bizarrice. Seu próprio cartaz de distribuição ostentava em letras garrafais um chamariz apelativo que remetia ao freak-show de Glen or Glenda?: “Será que o bisturi do cirurgião me tornou uma mulher ou uma aberração?”, o que bem ilustra que, se por um lado a figura do gay passava por um processo de resignificação dentro do imaginário social, a figura do transgênero ainda estava relegada à estranheza e à invisibilidade.

Myra Beckinridge

A mesma pecha do bizarro se estende -propositalmente- ao controverso Homem e Mulher Até Certo Ponto (Myra Breckinridge), de 1970, dirigido por Michael Sarne em adaptação do romance de Gore Vidal, com Raquel Welch no papel de um aspirante a cineasta que muda de sexo e adota o nome de Myra Beckinridge. Considerado um dos cinquenta piores filmes de todos os tempos, foi descrito pela revista Time como “um insulto à inteligência, uma afronta à sensibilidade e uma abominação para o olhar.” Gore Vidal considerou o filme uma ofensa pessoal, já que a excelente recepção de sua novela por parte da crítica trazia visibilidade a uma reflexão aprofundada sobre transexualidade e se propunha a ser um divisor de águas no pensamento americano a respeito de questões como patriarcado, performatividade de gênero e diversidade sexual. Hoje, em tempos em que a cultura visual revisita e constantemente agrega novos significados às imagens, Myra Beckinridge, a despeito de sua qualidade camp e completa falta de qualidade cinematográfica, atingiu status de cult e pertence ao leque de produções como Glen or Glenda e Pink Flamingos.

cena de Song of the Loon

Outro filme de 1970, adaptado de uma novela que procurava dissecar as relações na comunidade gay americana -desta vez a Califórnia do final do século XIX- foi A Canção do Louco (Song of The Loon). Dirigido por Andrew Herbert e roteirizado pelo próprio autor, Richard Amory, esta produção de baixo orçamento era focada no drama do homossexual buscando a liberdade sexual e tocava em temas como o ideal do amor livre numa sociedade ultra conservadora. Apesar de ser a adaptação de uma novela expressiva por narrar explicitamente relações sexuais e afetivas entre homens, como cinema se tornou irrelevante, muito pelo amadorismo da direção e dos atores. Em 1971, o inglês John Schlesinger, diretor de Perdidos Na Noite (Midnight Cowboy) realizou, com o aclamado Domingo Maldito (Sunday, Bloody Sunday), um trabalho notável onde as manifestações de diferentes sexualidades eram trazidas à tona numa trama em que o personagem bissexual de Murray Head figurava no centro de um triângulo amoroso envolvendo o homossexual vivido por Peter Finch e a personagem heterossexual de Glenda Jackson. O filme foi polêmico ao mostrar uma cena de beijo intensa entre Head e Peter Finch.

Domingo Maldito

O poeta, músico e performer Tuli Kupferberg em cena de W.R: Mysteries of The Organism

Foi ainda em 1971 que o diretor iugoslavo Dusan Makavejev, com o seu W.R: Mysteries of The Organism (W.R: Misterije Organizma) realizou um painel extenso e perspicaz sobre as relações entre sexualidade e poder, criando metáforas onde o sexo e o totalitarismo comunista se entremeiam numa montagem que mistura ficção e cenas documentais, para subverter conceitos psicanalíticos acerca da sexualidade. Tais conceitos, retirados das teorias de Reich (suas iniciais são o título do filme) perpassam noções como o poder do orgasmo como força transformadora social. Banido durante anos na Iugoslávia,  W.R: Mysteries of The Organism abarca em profundidade jamais vista em um filme a sexualidade e seus desdobramentos analisados pela psicanálise, assim como documenta os processos de liberação sexual individual e coletiva e busca dissecar o comportamento humano como algo completamente indissociável do sexo. O filme trazia figuras controversas como o artista transgênero Jackie Curtis, estrela da Factory de Andy Warhol, o terapeuta reichniano Alexander Lowen, e editores da revista pornográfica Screw. Um dos episódios do filme mostra a artista, lésbica, ativista do femininsmo e pesquisadora da sexualidade, Betty Dodson, pintando alguns amigos enquanto eles se masturbavam. Apesar de toda a polêmica gerada pelo seu teor subversivo no começo dos anos 70, W.R: Mysteries of The Organism permaneceu um longo período no esquecimento. Em 1999, o crítico de cinema Raymond Durgnat, após ter publicado renomados trabalhos sobre a nouvelle vague francesa e vários estudos sobre diretores como Luis Buñuel, Samuel Fuller, Jean Renoir e Hitchcock, publicou um livro inteiro dedicado a analisar o filme de Makavejev.

Burt Lancaster e Helmut Berger em Violência e Paixão

Durante toda a década de 70 o cinema independente -americano e europeu- explorou um tipo de produção chamada sexploitation, filmes baratos cuja temática era sempre a do erotismo e que muitas vezes continham cenas de sexo explícito. A profusão desses filmes acompanhava o espírito de liberdade sexual iniciado nos anos 60, e já na década de 70, com o relaxamento das medidas restritivas impostas ao cinema, a facilidade de acesso a tais produções gerou uma certa vulgarização do tema. O que há poucos anos antes era considerado tabu, agora era visto como mais um filme de classificação X ou R, os códigos que designavam filmes que continham sexo explícito e os que eram restritos para maiores de 18 anos. Se por um lado a comercialização de filmes sobre sexo se proliferava pelo mundo, por outro lado esta banalização levou os artistas interessados em abordar a sexualidade em seus filmes, a optar por um ângulo mais analítico ou criativo, e a mesclar com outros temas como política e existencialismo, vide grande parte das produções européias desse período. Em Violência e Paixão (Gruppo di famiglia in un interno), de 1974, Luchino Visconti cria um retrato intimista que abarca, com um olhar agudo sobre as relações sociais, a ambiguidade do desejo sexual geradora de conflitos internos e as características comportamentais de indivíduos distintos se relacionando à sombra do neofascismo na Itália. O filme parece ser um reflexo do fim da vida de Visconti: seu relacionamento amoroso com o ator Helmut Berger e sua postura crítica e amarga diante do cenário político italiano permeados por um sentimento latente de decadência e solidão.

o Salò de Pasolini: degradação humana às últimas consequências

Sexo e Totalitarismo: o poema horrendo de Pasolini

Esse mesmo cenário também foi alvo de crítica de Pier Paolo Pasolini em 1975, com seu Salò ou Os 120 Dias de Sodoma (Salò), porém, de forma menos contemplativa e mais agressiva. Uma das maiores obras de Pasolini, Salò parte do livro Os 120 Dias de Sodoma, do Marquês de Sade, readaptado para o regime fascista de Mussolini em 1944, e consiste numa alegoria chocante do totalitarismo, elevada ao ápice da violência física e psicológica. A perversão humana retratada sem concessões por Pasolini faz de Salò ainda hoje uma visão perturbadora do fascismo pela crueza de suas imagens e diálogos. Em 2006, o filme figurou numa lista publicada pela Associação de Críticos de Cinema de Chicago como uma das obras mais assustadoras já realizadas. Foi o último filme de Pasolini. No mesmo ano de 1975, o cineasta e poeta foi encontrado morto numa praia, sob circunstâncias obscuras. À época, o crime foi confessado por um garoto de programa. Em 2005, após ter cumprido a pena por assassinato, Pino Palosi se declarou inocente. O caso até hoje gera polêmica na Itália, tendo inúmeros indícios de possibilidade de crime político. Salò teria sido uma ousadia extrema demais para os olhos do neofascismo.

Enquanto a intenção de Pasolini era provocar através de uma denúncia social, de forma tão violenta que seu Salò pôde ser enquadrado por alguns críticos como um verdadeiro filme de horror, no mesmo ano o inglês Jim Sharman, mais interessado no horror enquanto gênero cinematográfico, revisivitava o gênero criando uma mistura megalomaníaca de musical, horror, comédia e ficção científica com The Rocky Horror Picture Show. Essa característica plural do filme também se estende à sua temática: homossexualidade, travestismo, canibalismo, voyerismo, adultério e incesto se interligam entre números musicais e sequências excêntricas e cômicas.
Nos Estados Unidos, novos diretores, influenciados pelo cinema político produzido na Europa, buscavam um afastamento das estruturas clássicas do cinema americano. Um Dia de Cão (Dog Day Afternoon), dirigido por Sidney Lumet em 1975, trazia Al Pacino como um homem simplório que assalta um banco para conseguir pagar a cirurgia de mudança de sexo do namorado. A figura do anti-herói – um homossexual desempregado que recorre ao crime- capaz de se tornar simpático ao público, cativar a massa que torce por ele no desenrolar da trama, é explorada no filme como um reflexo da situação política e econômica dos Estados Unidos durante a década de 70, assim como denota uma mudança no pensamento social: num tempo de corrupção e rebeldia, o homem comum se identifica com o anti-herói mais do que com aqueles que representam a lei e a moral.

Essa característica de crítica e enfrentamento em relação às questões políticas e sociais, determinante para que se trace um perfil do cinema independente americano e do cinema político europeu, abarca o personagem gay em meio à tantos outros temas que buscavam criar uma reflexão que, ao se afastar do mero entretenimento, tinha o intuito de contribuir num processo de transformação social. Por outro lado, o cinema de entretenimento não abandonara uma representação do indivíduo homossexual como instrumento cômico, vide A Gaiola das Loucas (La Cage Aux Folles), 1978, uma produção franco-italiana adaptada da peça de Jean Poiret, encenada na Broadway e em inúmeros países até os dias de hoje, que se tornou uma espécie de modelo estético para comédias com protagonistas homossexuais.
Ao longo da história do cinema, a história do personagem gay se determina por bifurcações onde a temática queer surgiu, na grande maioria das vezes, timidamente, de forma periférica ou então como ferramenta de construção de personalidades específicas: o personagem degenerado e o personagem humorístico. Com algumas exceções, a temática queer ainda não fora amplamente dissecada e os estereótipos gays não haviam recebido um tratamento merecido de desmistificação ainda nos anos 70. Enquanto no cinema clássico o personagem não-normativo esteve relegado ao papel de vilão, no cinema da década de 70 ele recebeu status de herói, e é nessa perspectiva de reflexão social e política que o indivíduo queer encontra espaço para uma representação mais realista e analítica. As tantas bifurcações começavam a dar lugar a caminhos bem definidos na trajetória queer dentro do cinema.

Léo Tavares

Ver Também:

Queer at The Movies: Um Panorama da Trajetória Queer no Cinema – Parte IV: Um Espaço no Mainstream e o Imagético Queer na Contracultura

Queer at The Movies: Um Panorama da Trajetória Queer no Cinema – Parte III: O Auge da Era Hays

Queer at The Movies: Um Panorama da Trajetória Queer no Cinema –Parte II: Hollywood e o Cinema Noir

 Queer at The Movies: Um Panorama da Trajetória Queer no Cinema – Parte I: Dos Early Movies ao Expressionismo Alemão e ao Surrealismo

 

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5 respostas para Queer at The Movies: Um Panorama da Trajetória Queer no Cinema

  1. Dublado disse:

    Muita gente no Brasil procura o conteúdo exposto aqui, você é o que há!

  2. mariposo-L disse:

    Nõa sei como cheguei , mas sei que não quero sair do seu blog ………….
    Muito legal adorei seus textos

    Parabéns

    • carlabarreto disse:

      Mariposo,

      Obrigada pelo acesso. Esse blog foi realizado numa disciplina na Universidade de Brasília sobre sexo, gênero e sexualidade no olhar do cinema, no departamento de artes visuais.
      iremos continuar o trabalho em breve, pois agora temos um grupo de pesquisa em cultura visual queer.
      Abraço
      Carla

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