“Mulheres” como sujeito do feminismo

O Grupo de estudos Cultura Visual Queer, que pertence ao Grupo de Pesquisa Transviações – Visualidade e Educação, do Programa de Pós-graduação em Arte da Universidade de Brasília, apresenta seus estudos em questões de sexo, gênero e sexualidade. O grupo com encontros quinzenais tem como objetivo, na sua primeira etapa, discutir o livro “Problemas de Gênero – feminismo e subversão da identidade” de Judith Butler. O Programa pode ser consultado na página do blog “sobre”.

Capítulo I . Sujeitos do sexo/gênero/desejo … 1. “Mulheres” como sujeito do feminismo

Judith Butler inicia uma de suas grandes obras “Problemas de Gênero – feminismo e subversão da identidade[1]“(2003) identificando que na essência da teoria feminista há um entendimento de uma identidade fixa. Tal entendimento ocorre devido a uma necessidade de representação política para promover a visibilidade das mulheres. Porém, essa concepção vem entrando em colapso no interior do discurso feminista, ao questionar o sujeito das mulheres, que passa a ser reconhecido não mais em “termos estáveis ou permanentes” (Butler, pág. 18). No primeiro capítulo – Sujeitos do sexo/gênero/desejo, discute-se a essencialização que orienta a mulher enquanto o sujeito do feminismo. “Foucault observa que os sistemas jurídicos de poder produzem os sujeitos que subsequentemente passam a representar” (p. 18).

A noção de sujeito é apontada como vital para a política, na medida em que esta delimitaria seu alcance, recusas, exclusões. Quem é o sujeito do feminismo? Essa pergunta suscita tensões para o feminismo, ao se deflagrar em território cravejado de paradoxos, expondo os dispositivos de legitimação e exclusões, que perpetram a ideia de circunscrição, isto é, ter de delimintar qual seria o sujeito do feminismo. Se for apenas a mulher, isso, mais uma vez, traria a velha binaridade, aliada à heteronormativade homem x mulher. Tais questões jurídicas propiciam impasses, na medida em que acabam por constringir as delimitações de sujeito e suas políticas, dentro do território das especificidades duras. Nesse sentido, o discurso feminista, ao afirmar o sujeito feminista apenas como “mulher”, estaria corroborando com a lógica do sistema jurídico de formação discursiva sobre os sujeitos. E assim, jamais teria sucesso sobre a emancipação das “mulheres”, pois as mesmas estruturas de poder que produzem o sujeito do feminismo, são as mesmas estruturas que também reprimem.

Butler justifica essa análise, ao informar que a construção dos sujeitos para o poder jurídico ocorre vinculada a objetivos de legitimação e de exclusão. Ela ainda explica que essa legitimação do sujeito perante ao poder jurídico ainda é um vestígio da hipótese do estado natural, localizado no liberalismo clássico invocado no contrato social.

Chris Cunninhgam é um diretor inglês de clips de música e videoartista. Retratou em muitos de seus trabalhos corpos e sujeitos queers. Essa imagem é do clip do artista Richard D. James (Aphex Twin) Windowlicker.

O problema não acaba por ai. Butler ressalta sobre o problema político produzido pelo feminismo ao supor um sujeito definido pelas “mulheres”. Ela explica que essa noção de mulher está associada a uma identidade comum limitante que não dialoga com intersecções nas identidades discursivamente constituídas, raciais, classistas, étnicas, sexuais e regionais, e porque o gênero não se constitui totalmente como coerente e consistente. Além disso, a noção freqüente de que a opressão das mulheres é única, singular e a mesma em todo o mundo, favorece e fortalece, não apenas um movimento de universalizar práticas sexistas ocidentais, mas também de colocar tal prática como um barbarismo intrínseco e naturalizado. Butler levanta algumas questões que surgiram em muitos debates (pág. 21):

Existiriam traços comuns entre as “mulheres”, preexistentes à sua opressão, ou estariam as “mulheres” ligadas em virtude somente de sua opressão?

Há uma especificidade das culturas das mulheres, independente de sua subordinação pelas culturas masculinistas hegemônicas?

Caracterizam-se sempre a especificidade e a integridade das práticas ou lingüísticas das mulheres por oposição e, portanto, nos termos de alguma outra formação cultural dominante?

Existe uma região do “especificamente feminino”, diferenciada do masculino como tal e reconhecível em sua diferença por uma universalidade indistinta e conseqüentemente presumida das “mulheres”?

Claude Cahun – Sem título, fotografia P&B, sem data. Fotógrafa e escritora francesa, Cahun frequentemente trabalhou conceitos de gênero e sexualidade nas suas produções artísticas.

 

Essa noção universalizante do patriarcado hegemônico contribui para uma estratégia de fortalecimento de representatividade das reivindicações do feminismo e ainda, reforça a relação binária masculino/feminino, que conseqüentemente, reforça a matriz heterossexual. Butler sugere como ponto de partida para debater sobre a genealogia crítica das estruturas jurídicas da linguagem e da política é o presente histórico de Karl Marx, que resumidamente seria a crítica às categorias de identidade. Mas ela reforça que pode ser o grande momento para o movimento feminista livrar-se de uma base única e invariável e refletir sobre a exigência de construir um sujeito do feminismo e principalmente, construir uma teoria feminista com “construção variável da identidade como pré-requisito metodológico e normativo, senão como um objetivo político.” (pág. 23).

“A identidade do sujeito feminista não deve ser o fundamento da política feminista, pois a formação do sujeito ocorre no interior de um campo de poder sistematicamente encoberto pela afirmação desse fundamento.” (pág. 23).

Em seu prefácio, Problemas de Gênero, a mulher, enquanto fonte de mistério, foi, criticamente, entendida por Simone de Beauvoir, como leitura malévola, por ser excludente , separaratista e distanciadora, produzida pelos fálicos inventores dessa trama. Entretanto, o “objeto feminino” intervém e reverte o lugar confortável dos narradores, da autoridade da posição masculina, expondo-os, dependentes, e desmontanto a ilusoriedade desta autonomia, coisas da metafísica dialética hegeliana, repensando os lugares de gozo entre senhor e escravo. Pode-se, a contrapelo, dispensar tais medidas, pois manter esses lugares de diferença ontológicos significa manter um sistema de classificação:

“Rir de categorias seria indispensável para o feminismo” (p. 8). Esta frase desmonta o nó mulher/feminismo, que afirmaria e se prenderia a papéis binários.

Michel Foucault, reevocando Friedrich Nietzsche, vem com a noção de “genealogia” para recusar as “origens do gênero”, mas mapeia as narrativas e suas políticas, deixando instável a estabilidade do feminino.

Dzi Croquettes é um grupo de atores e bailarinos, documentados no filme de Tatiana Issa e Raphael Alvarez (2009), que subverteram a política de repressão da ditadura militar no Brasil com seus espetáculos. “O grupo revolucionou os palcos cariocas com seus espetáculos andróginos. Desobedientes e debochados, decidiram desrespeitar a ordem do regime militar com inteligência. Os sapatos de salto alto e as roupas femininas propositalmente exibiam as pernas cabeludas e a barba cultivada pelos homens do grupo.”

… 2. A ordem compulsória do sexo/gênero/desejo

Butler relaciona a distinção sexo/gênero como uma descontinuidade radical. Explica que mesmo que possamos considerar a estabilidade do sexo binário, não é possível apenas considerar a “construção de “homens” aplique-se exclusivamente a corpos masculinos, ou que o termo ‘mulheres’ interprete somente corpos femininos.” (pág. 24)

E o que é afinal o ‘sexo’? Algumas perguntas, nos ajudam a nortear para o debate:

É ele natural, anatômico, cromossômico ou hormonal, e como deve a crítica feminista avaliar os discursos científicos que alegam estabelecer tais “fatos” para nós?

Teria o sexo uma história?

Possuiria casa sexo uma história ou histórias diferentes?

Haveria uma história de como se estabeleceu a dualidade do sexo, uma genealogia capaz de expor as opções binárias como construção variável?

Seriam os fatos ostensivamente naturais do sexo produzidos discursivamente por vários discursos científicos a serviço de outros interesses políticos e sociais?

São questões que ainda não se esclareceram e talvez, não terão oportunidade de se pronunciarem. Mas indiscutivelmente, Butler afirma que “na conjuntura atual , já está claro que colocar a dualidade do sexo num domínio pré-discursivo é uma das maneiras pelas quais a estabilidade interna e a estrutura binária do sexo são eficazmente asseguradas.”(pág. 25).

 [Anna Amélia Faria e Carla Barreto]


[1] Vale relembrar que Female Trouble (Problemas de Gênero) é o título do filme de John Waters, estrelado por Divine.

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